Como a especulação redesenhou a Figueira da Foz
Um caso emblemático do urbanismo que corrompe Portugal
Um dos panoramas mais atraentes da Figueira da Foz é a sua longa avenida marginal à praia: de um lado a frente urbana, do outro um imenso areal curvado em crescente. Faz recordar, tanto pela alta fachada construída como pelo mar que se lhe vê diante, a praia de Copacabana. Até 2004 toda a berma da avenida do lado de terra estava edificada, com uma notável excepção: um hectare e meio de solo desocupado pertencente à Câmara Municipal. Era chamado “a Ponte do Galante” em referência a uma pequena ponte que em tempos por ali passara sobre uma ribeira. Poderia ter-se tornado um jardim público, mas a tentação de o sacrificar à especulação imobiliária de privados foi irresistível: hoje encontra-se atravancada pelo betão de sete edifícios com dezasseis ou mais pisos.
Tal como em Copacabana e em Marbella (esta última justamente célebre pela corrupção urbanística), também na Figueira o interesse dos promotores imobiliários os motiva a impor à cidade edifícios cada vez mais altos, onde quer que se encontrem terrenos vagos, para empolar o valor dos terrenos em que assentam e assim captar mais-valias urbanísticas, mesmo que tal mutile a volumetria de toda a malha urbana.
Para que um promotor consiga sacar mais-valias urbanísticas de uma avenida praticamente consolidada como a marginal da Figueira, duas manobras estão ao seu dispor: ou adquire um edifício de pequeno volume e solicita à autarquia alvará para o expandir, ou adquire um lote de terreno não construído a baixo preço e solicita alvará para o edificar. Em ambos os casos o valor do prédio é instantaneamente multiplicado pela decisão administrativa de emitir um alvará, oferecendo ao proprietário aquilo a que os economistas clássicos chamavam um “rendimento imerecido”.
Até mesmo o pai ideológico do Liberalismo, Stuart Mill, condenava esta forma de enriquecimento. Fiéis ao pensamento daquele filósofo, os países mais desenvolvidos banem semelhantes tentativas de enriquecimento sem causa produtiva e designam-nos nos meios eruditos por “actividades de captura de rendas [urbanísticas]”, e nos meios populares de pura e simples “corrupção”.
Em Portugal passa-se todo o contrário: grosseiras omissões legislativas abençoam a captura de rendas urbanísticas de modo que ela foi exuberantemente praticada enquanto decorreu a bolha imobiliária de 1986-2006. O caso do Galante é um mero exemplo entre uma multidão de outros por todo o nosso território, com os resultados que estão à vista de Norte a Sul: gerou-se uma minúscula oligarquia de promotores dotados de fortunas subitamente adquiridas, forçou-se a maioria da população a contrair hipotecas para imóveis sobrefacturados, empurrou-se o erário público para o défice à força de lhe subtrair as suas receitas urbanísticas legítimas, e desfigurou-se a paisagem do país.
Para o pequeno terreno público da Ponte do Galante, no qual se reconheciam duas fracções, o Plano Director Municipal previa até 2003 a construção de um hotel de quatro pisos e cinquenta fogos. Nessas condições, a autarquia vendeu em 2003 a primeira das suas fracções por 1,8 milhões de euros à empresa privada Imofoz. Passadas poucas horas, a Imofoz revendeu a fracção à empresa Foz Beach (criada expressamente para a transacção) por 2,92 milhões de euros — arrecadando dessa forma uma mais-valia de 1,12 milhões de euros. Uma segunda fracção foi vendida pela Câmara à mesma empresa, em 2004, por 1,3 milhões de euros. O negócio ainda estava no começo: como se veria, graças a manipulações dos planos urbanísticos e à emissão de alvarás, enormes mais-valias iriam somar-se.
Assim que esse terreno passou à posse dos privados, o executivo camarário pediu nesse mesmo ano a suspensão do Plano Director Municipal (PDM) e, conseguindo-a, modificou os planos de pormenor de modo a poder autorizar nesse local, à revelia do previsto, a edificação de nada menos do que um enorme aparthotel (um eufemismo para apartamentos privados) de vinte andares com mais de 500 fogos, ladeado por seis prédios de oito pisos contendo mais de 250 apartamentos adicionais. Tudo isto em menos de dois hectares na zona mais nobre da cidade.
É muito difícil estimar o montante de mais-valias urbanísticas que a autarquia ofereceu aos privados graças a estas manobras políco-administrativas, mas pode tentar-se calcular por defeito. Sabendo-se que o custo de construção por metro quadrado destes equipamentos não excede os 700 euros, atendendo-se que o seu preço final de revenda era não inferior a 1700 euros por metro quadrado a que os imóveis deste bairro estavam a ser vendidos entre 2003 e 2007 (produzindo-se cerca de 1000 euros de mais-valia urbanística por metro quadrado construído nesse contexto de bolha imobiliária), e calculando-se ainda que a suspensão do PDM autorizou a edificação de pelo menos 40.000 metros quadrados extra, resulta que esta “suspensão de PDM” pôs à disposição de um grupo privado pelo menos 40 milhões de euros em mais-valias urbanísticas. Estas mais-valias urbanísticas deveriam, segundo a Lei de qualquer país civilizado que nos serve de inspiração, reverter à posse pública uma vez que foram criadas por decisões administrativas e não pelo mérito empreendedorístico do promotor.
O erário público perdeu não menos de 40 milhões de euros com esta manobra igual a tantas outras que vêm destruindo há décadas as nossas cidades e as nossas finanças. O rédito é apropriado imerecidamente pelos privados; as externalidades negativas (congestionamento da malha urbana, sobrecarga das infra-estruturas públicas, degradação estética, etc.) são suportadas por todos os cidadãos.
Em termos de economia política, que se passou? Um conjunto de particulares serviu-se do factor mais escasso da economia — o solo — para, mancomunado com decisores políticos indiferentes ao interesse colectivo, subtrair à posse pública as revalorizações do património criadas por decisões urbanísticas da administração. Os rendimentos milionários encaixados pelos beneficiários destes processos não são, em rigor taxonómico, nem um lucro (a recompensa do empreendedorismo inovador em condições de concorrência perfeita), nem um juro (a recompensa do risco sobre o capital), nem uma mais-valia financeira (resultantes de riscos sobre a compra e venda de activos em livre mercado); são rendas diferenciais fundiárias de génese político administrativa. São idênticas, na sua essência (mas não na sua aparência) às rendas petrolíferas oferecidas pelas decisões dos ministérios do petróleo de certos países do Terceiro Mundo. São um esbulho da riqueza colectiva por um grupo de oportunistas que não hesitam em servir-se do aparelho administrativo para fins particulares.
As actividades político-económicas que produziram o caso da Ponte do Galante são, na sua natureza profunda e nos seus resultados últimos, idênticas àquelas que produziram a vasta maioria das urbanizações maciças e indesculpavelmente despropositadas que se esparziram pelas paisagens portuguesas das últimas décadas. A Ponte do Galante é um mero caso particular de uma síndroma nacional que arrasou a economia e o território para beneficiar um grupo ínfimo de “promotores”. Facto invulgar numa sociedade tão conformista como tem sido a portuguesa, contra este abuso urbanístico ergueu-se um movimento cívico que levou aos tribunais o autarca, o promotor e o Conselho de Ministros, acusando-os de violar todo um vasto conjunto de normas administrativas e direitos constitucionais.
** texto de Pedro Bingre na "Ops! Revista de Opinião Socialista"
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